domingo, 24 de janeiro de 2016

AI DE TI, ANTONINA!!


Palavra do Senhor no Evangelho de São Maneco Cego:

Ai de ti, Antonina!

Ai de ti, pobre e velha cidade! Ai de ti, cidade mesquinha e miserável, com suas ruas cheirando a mijo, suas casas cheirando a mofo, castigada pelo sol e pelos ventos e maltratada pelas chuvas e pelas marés!
Ai de tuas ruas cheias de mato, de teus muros caídos, de tuas casas sem cuidado!  Ai de teus miseráveis quintais, tanto os cheios de trastes, velharias e sujeira, quanto os limpinhos e recendendo a flores. Ai de tua baia assoreada, cheia de mato e sujeira!
Ai de ti e de teus filhos, perdidos em suas ruas, perdidos nas casas, perdidos no mundo imenso além da Serra e além do Mar!
Mandei marés de lua, mas vós não vos importunastes! Mandei marés de sete anos, mas ninguém deu a mínima! Mandei assorear a baia, para enchê-la de entulhos e lodo, mas continuastes no pecado!
Enviei temporais e chuvas imensas que fizessem derreter teus morros e destruir suas casas, mas nada mudou vossa conduta, Antonina!
Ai te ti, Antonina!
Ai de teus filhos que se perderam no mar: enfrentando as águas salobras de nossa baia, ou enfrentando os mares bravios para além da barra de Superagui!  Ai dos teus filhos que se perderam além da Serra: enfrentando o frio, o vento e as outras cidades, tão mais amistosas e hospitaleiras que a nossa! Ai dos bagrinhos que enfrentaram o barro e o pó das estradas, dos que trabalharam em grandes plantações, em imensas fábricas e escuras minas! Ai também dos que trabalharam em escritórios ou nas mil vezes malditas profissões liberais! Ai dos que encontraram colegas, amigos e amores para longe do Morro do Bom Brinquedo ou da Ponta da Pita! Ai dos que se enganaram achando que este mundo além da Serra era melhor, ou mais injusto, ou a última chance!
Ai também dos que permaneceram caminhando em tuas ruas ou vivendo em tuas casas, Antonina! Ai dos que tentaram ganhar dinheiro e dos que não mexeram uma palha. Ai dos que viveram das heranças, dos que roubaram as pensões dos avós ou dos que trabalharam honestamente! Ai  de teus profissionais liberais, teus comerciantes e teus funcionários públicos! Ai, sobretudo, de teus trabalhadores, que moram na Pita ou Batel ou Tucunduva ou Praia dos Polacos ou Portinho, e que em vão carpiram quintais, fizeram faxina, carregaram caminhões e cuidaram de crianças e velhos!
 Ai também dos trabalhadores que no passado carregaram navios, cavaram estradas e construíram pontes, e tentaram sinceramente, construir uma cidade no fundo daquela infecta baia. Ai das mulheres que, por gerações, pariram filhos e alimentaram suas preguiçosas famílias, que costuraram roupas e fizeram rendas de bilros e fizeram bolos e doces para vender fora. Ai das mulheres que lavaram roupa pra fora, ai das cozinheiras, copeiras e ai das pobres criadas, abusadas por todos!
Ai de teus políticos, teus sindicalistas, teus policiais, teus juízes!! Ai de teus padres e teus pastores! Ai de teus jornalistas e blogueiros! Ai dos teus haters, que pensam estar a salvo sob o anonimato da internet! Ai dos deputados, governadores, senadores, e de todos os que vêm aqui pedir voto! Ai dos que usam a inocência das pessoas, dos que compram voto, dos que te corrompem e te roubam, pobre cidade!  
Ai de ti porque você se deixa roubar, Antonina!! Não és mais pobre de espírito do que aqueles te expoliam, falsa e hipócrita cidade!! Você não é melhor nem pior que Goianésia, que Anicuns, que Laranjeiras do Sul. Ai dos que querem teu mal, Antonina, mas presta atenção! Ai dos que querem teu bem!! Ai daqueles que querem te salvar de alguém, de alguma coisa, de qualquer coisa, deles mesmos!!

Ai de ti, Antonina!!

Ai de ti, cidade tão cheia de pecados! Eu te amaldiçoo a sofrer neste mundo sem remissão a sorte daqueles que existem só por existir!
Pois que é chegada a hora da remissão sem salvação, da salvação com culpa eterna. Pois que te condeno a existir, Antonina, enquanto o mar ou os ventos ou as chuvas assim quiserem. Não te destruirei como a Babilônia, afogada em pecados! Não farei as ondas destruírem o mercado, ou os ventos derrubarem a igreja da Colina. Também não espalharei o terror e a morte no Jequiti, no Cabral, na Caixa D´Água e no Quilometro 4, Antonina!
Mas te condenarei a coisa pior: existir sem brilho, sem alegria, sem pompa nem majestade, pobre cidade!
Teus carnavais não brilharão mais, teus cantores e poetas não cantarão mais as suas glórias, cidade amaldiçoada! Teus pintores não vão mais por as suas belas tardes no papel, e tua historia vai se apagar sem que dela conhecêsseis a metade, Antonina! Tuas ruas se cobrirão de mato e ninguém terá forças para carpi-lo! Teus bares e restaurantes ficarão as moscas e tuas igrejas vazias!
Haverá um dia em que, perdida no marasmo e na mediocridade, ninguém mais se lembrará de ti, Antonina! Neste dia os haters de internet aparecerão finalmente nas ruas da cidade, babando e falando suas frases desconexas e cheias de rancor, mas não haverá ninguém para escuta-los!
Não haverá o rio do Nunes, não haverá a Caçarola do Joca, ou a Igreja do Bom Jesus. Não haverá mais desfile de escandalosas nem procissão de Nossa Senhora Do Pilar. Ninguém vai querer saber de suas qualidades, velha cidade, ou dará risadas com os não poucos defeitos dos bagrinhos seus filhos. Nunca foste e jamais será a Capital da Música, pois não haverá ninguém para cantar seus hinos!
Por que tua hora chegou, Antonina! Não há mais espaço para ti na terra! Te dei Mar, Arte e Amor, mas os desperdiçaste!  Que caia sobre ti a minha ira!
E assim falou o Senhor sobre a cidade de Antonina.



terça-feira, 12 de janeiro de 2016

PROCRASTINOS, O DEUS DE NOSSO TEMPO


Estatua inacabada de Procrastinos (sec IV aC, Jônia setentrional, a esquerda de quem vai para Mileto) 
Para Ricardo Castillo 
(que não é absolutamente 
devoto de Procrastinos...)

Ateus, agnósticos e outros incréus em geral, creiam neste pobre bagrinho: Procrastinos é o Deus de nosso tempo.
Um dos muitos e mal conhecidos deuses olímpicos, Procrastinos era filho de Cronos, o Tempo, e Réia, a Terra. Desde pequeno, Procrastinos era um deus muito cruel e amoral, o que lhe conferiu uma grande legião de seguidores, cujas origens nascem na Grécia Clássica e chegam a nosso tempo. Procrastinos, em lugar de fazer o que seu pai Cronos mandava, ficava pelas ruas do Olimpo fazendo nada, caçando formigas pra arrancar as cabeças ou matando passarinho com cetra (ou bodoque ou estilingue, dependendo da região da Grécia que estamos falando).
No entanto, houve um tempo em que Procrastinos se revoltou contra seu Destino, e tentou matar o Tempo. Cronos, seu pai colérico e vingativo, sentindo-se ameaçado pelo jovem deus, o atirou num imundo sofá cheio de ácaros e o condenou a assistir Sessão da Tarde até o fim dos tempos. Procrastinos só sobreviveu este castigo com grandes doses de Ovomaltine e bolachas negresco, que lhe eram dadas as escondidas pelas ninfas advertises. Vendo que o comportamento do deus não melhorava, Cronos ampliou o castigo, e o condenou a também assistir Malhação.
Esta existência cruel e tediosa não impediu, porém, que Procrastinos tivesse uma imensa legião de seguidores. Trata-se de um culto brando e cotidiano, exercido em silencio e devoção. De fato, o culto a Procrastinos não tem o voluntarismo do estridente culto das religiões monoteístas modernas. Apesar de ter alguns inegáveis pontos de contato, seu culto também não segue a linha das religiões orientais e seus ritos de silencio e paz interior.
O culto a Procrastinos é um culto do desassossego, da anti-paz de espirito. Seus adeptos estão sempre num grande estado de confusão mental, de desordem interior, procurando um vir-a-ser num futuro próximo e ao mesmo tempo distante, onde tudo terá uma solução mágica e misteriosa. Momentaneamente saciados, os adeptos do deus então se atiram num sofá reverencial, para assistir sabe-se lá o que na televisão, ou, em tempos mais recentes, no computador. Hoje, as Redes Sociais são um grande espaço de culto a Procrastinos.
Não existiam, na Grécia Antiga, muitos espaços para o culto a Procrastinos. O que se sabe é que, embora mais reverenciado que Zeus e muito mais amado que Apolo, os seguidores de Procrastinos não construíram nenhum templo de culto digno de nota. Ao que parece, houve muitos projetos, mas poucos saíram do papel, dado o empenho dos fieis aos cultos de procrastinação (prokrastineia), como vieram a ser chamados. Algumas vezes, os cultos de Procratinos eram feitos juntamente com os cultos báquicos, desde que não exigissem muito esforço. A ênfase na produção de uva, o culto das videiras e o envase do vinho não eram entendidos pelos procrastinadores, como vieram a ser chamados os seguidores de Procrastinos.
Platão tinha uma visão bastante positiva de Procrastinos, e colocou no Timeu um dialogo com Flésias de Epidauro, onde havia um elogio da atividade dos procrastinadores, muitas vezes mal compreendido pelos platônicos mais diligentes. Já Aristóteles (sempre ele!) condenava o culto a Procrastinos, tendo escrito alguns parágrafos furibundos no terceiro volume de sua Física. No entanto, esta foi uma obra que, por influência de Procrastinos, o Estagirita não conseguiu terminar. Em Roma, os epicuristas viam com bastante simpatia o culto a Procrastinos, o qual, entretanto, era veementemente combatido pelos estoicos.
Já Santo Tomas de Aquino condenou com veemência o culto a Procrastinos, que se desenvolvia sem cessar por toda a Idade Media, mesmo após a morte do culto dos deuses clássicos. Em seu clássico “blasfêmia procrastinas vulgus in teolodiceam nostram" escrita em 1257 em Paris, o sábio e santo iniciou uma veemente  obra contra Procrastinos, a procrastinação e os procrastinadores. No entanto, por motivos que permanecem  um tanto obscuros até para os estudiosos da vida e da obra de S. Tomás, a obra infelizmente não foi concluída.

(este pequeno opúsculo sobre o grande deus Procrastinos deveria prosseguir em quinze volumes e dois tomos, com notas das edições grega, latina e árabe. Entretanto, isso exige muito esforço! Vou deixar a segunda parte, de mais três paginas pra amanhã, e continuo depois do almoço, assim que tomar um café. Eu juro!! Por Procrastinos!!)


sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O INDUSTRIAL E O CANTADOR


Hoje, ao andar pela Deitada-a-beira-do-mar, vi uma placa de rua que me deixou intrigado: o que fazem ali, juntos, Bento Cego e o Comendador Matarazzo?
De um lado, temos Bento Cego (1821 – 189?), nosso bardo, talvez o maior artista antoninense de todos os tempos.  Pobre e cego , o negro Bento nasceu numa casinha humilde no bairro do Registro, em Antonina.  Saiu de lá, em tenra idade, para ganhar o mundo em duelos e trovas de viola. Teve uma vida sofrida e memorável, tendo sido autor de versos sublimes cantados em feiras e festas profanas e religiosas de todo o centro-sul do Brasil, desde o Rio Grande do Sul até Minas Gerais. O pouco que sabemos de sua vida foi pesquisado pelo cônego Manoel Vicente da silva, e pelo jornalista Nestor de Castro (ver aqui).
De outro lado, o Comendador Matarazzo (1883-1920), o primeiro filho brasileiro do industrial Francisco Matarazzo. Durante a Primeira Guerra Mundial, enquanto o pai Francisco participava do esforço de guerra italiano, o jovem industrial Ermelino aumentava o capital e as instalações das Indústrias Matarazzo no Brasil. É de 1917 a construção do moinho do Itapema, que mudou para sempre Antonina com a implantação do parque industrial e de um bairro praticamente inteiro. Falecido num acidente de carro na Itália em 1920, o jovem Comendador Ermelino (tinha só 36 anos) foi uma promessa de curta duração, mas que deixou marcas duradouras em nossa incipiente industrialização.
Mesmo as duas ruas são muito diferentes. A Rua Bento Cego é bem menor, e inicia-se na Praça Coronel Macedo, piamente, próximo ao largo da matriz. Atravessa inicialmente a Rua do Esteiro, a pecaminosa Rua do Esteiro dos puteiros de outrora, a hoje simples e modesta Rua Dr. Mello. Depois da pequena ponte do Esteiro, a rua atravessa humildemente uma grande zona de mangue, cheia de água, capins e de rizófora, a arvore do mangue. Construída com aterro sobre o mangue, sentimos ao atravessa-la  o cheiro de podre e a sensação de estar no meio do barro e das águas escuras e salobras de nossos manguezais. A Rua Bento Cego termina simples, na esquina da grande Avenida Comendador Maratazzo.
A Avenida Comendador Matarazzo inicia-se no porto, cruza as casas de tijolinho e o grande complexo dos Moinhos Matarazzo, grande obra da arquitetura industrial do inicio do século. Ao seu redor existiam diversos grandes armazéns – o Valente, a Sermara e tantos outros. Eram construções simples e grandes, com algumas ruínas ainda aparecendo, e que representavam importantes firmas de navegação de outrora. Hoje pouco visíveis, eram muito importantes os trilhos do trem, que seguiam paralela e obedientemente em toda a sua extensão. Enquanto que pela rua iam os automóveis, ao seu lado os vagões transportavam todo o tipo de mercadoria para os armazéns e o próprio porto, ali bem do seu lado, no Itapema.
O que podemos imaginar neste encontro entre figuras tão díspares como Bento Cego e o Comendador Matarazzo? O que diria Bento Cego para o Comendador? E ele, o que responderia? Bento cego cantaria uma trova, louvando os feitos do industrial? Será que ele, um provável apreciador da opera italiana, se comoveria com os versos singelos do negro cantador? Seria um encontro grandioso, para acima do bem e do mal, ou seria um grande fiasco, um mero encontro banal entre dois seres que não se conhecem, não se apreciam, não se entendem?
E o que a Antonina de hoje diria para estes dois personagens? Bento Cego teria enfim seu reconhecimento pelos seus concidadãos? Será que apreciaríamos de verdade seus versos, e canto e seu sofrimento? E o Comendador, será que teria alguma empatia pelos bagrinhos de hoje em seus carros e seus celulares correndo, andando, amando e trabalhando por nossas ruas tortas?

Ou será que nós, passando todo o dia pela esquina de um encontro tão improvável talvez preferíssemos  nem pensar nisso, ocupados que estamos com nossa existência? Será que se eles tivessem de fato algo  a nos dizer, talvez preferíssemos não ouvir?