sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O INDUSTRIAL E O CANTADOR


Hoje, ao andar pela Deitada-a-beira-do-mar, vi uma placa de rua que me deixou intrigado: o que fazem ali, juntos, Bento Cego e o Comendador Matarazzo?
De um lado, temos Bento Cego (1821 – 189?), nosso bardo, talvez o maior artista antoninense de todos os tempos.  Pobre e cego , o negro Bento nasceu numa casinha humilde no bairro do Registro, em Antonina.  Saiu de lá, em tenra idade, para ganhar o mundo em duelos e trovas de viola. Teve uma vida sofrida e memorável, tendo sido autor de versos sublimes cantados em feiras e festas profanas e religiosas de todo o centro-sul do Brasil, desde o Rio Grande do Sul até Minas Gerais. O pouco que sabemos de sua vida foi pesquisado pelo cônego Manoel Vicente da silva, e pelo jornalista Nestor de Castro (ver aqui).
De outro lado, o Comendador Matarazzo (1883-1920), o primeiro filho brasileiro do industrial Francisco Matarazzo. Durante a Primeira Guerra Mundial, enquanto o pai Francisco participava do esforço de guerra italiano, o jovem industrial Ermelino aumentava o capital e as instalações das Indústrias Matarazzo no Brasil. É de 1917 a construção do moinho do Itapema, que mudou para sempre Antonina com a implantação do parque industrial e de um bairro praticamente inteiro. Falecido num acidente de carro na Itália em 1920, o jovem Comendador Ermelino (tinha só 36 anos) foi uma promessa de curta duração, mas que deixou marcas duradouras em nossa incipiente industrialização.
Mesmo as duas ruas são muito diferentes. A Rua Bento Cego é bem menor, e inicia-se na Praça Coronel Macedo, piamente, próximo ao largo da matriz. Atravessa inicialmente a Rua do Esteiro, a pecaminosa Rua do Esteiro dos puteiros de outrora, a hoje simples e modesta Rua Dr. Mello. Depois da pequena ponte do Esteiro, a rua atravessa humildemente uma grande zona de mangue, cheia de água, capins e de rizófora, a arvore do mangue. Construída com aterro sobre o mangue, sentimos ao atravessa-la  o cheiro de podre e a sensação de estar no meio do barro e das águas escuras e salobras de nossos manguezais. A Rua Bento Cego termina simples, na esquina da grande Avenida Comendador Maratazzo.
A Avenida Comendador Matarazzo inicia-se no porto, cruza as casas de tijolinho e o grande complexo dos Moinhos Matarazzo, grande obra da arquitetura industrial do inicio do século. Ao seu redor existiam diversos grandes armazéns – o Valente, a Sermara e tantos outros. Eram construções simples e grandes, com algumas ruínas ainda aparecendo, e que representavam importantes firmas de navegação de outrora. Hoje pouco visíveis, eram muito importantes os trilhos do trem, que seguiam paralela e obedientemente em toda a sua extensão. Enquanto que pela rua iam os automóveis, ao seu lado os vagões transportavam todo o tipo de mercadoria para os armazéns e o próprio porto, ali bem do seu lado, no Itapema.
O que podemos imaginar neste encontro entre figuras tão díspares como Bento Cego e o Comendador Matarazzo? O que diria Bento Cego para o Comendador? E ele, o que responderia? Bento cego cantaria uma trova, louvando os feitos do industrial? Será que ele, um provável apreciador da opera italiana, se comoveria com os versos singelos do negro cantador? Seria um encontro grandioso, para acima do bem e do mal, ou seria um grande fiasco, um mero encontro banal entre dois seres que não se conhecem, não se apreciam, não se entendem?
E o que a Antonina de hoje diria para estes dois personagens? Bento Cego teria enfim seu reconhecimento pelos seus concidadãos? Será que apreciaríamos de verdade seus versos, e canto e seu sofrimento? E o Comendador, será que teria alguma empatia pelos bagrinhos de hoje em seus carros e seus celulares correndo, andando, amando e trabalhando por nossas ruas tortas?

Ou será que nós, passando todo o dia pela esquina de um encontro tão improvável talvez preferíssemos  nem pensar nisso, ocupados que estamos com nossa existência? Será que se eles tivessem de fato algo  a nos dizer, talvez preferíssemos não ouvir?

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