sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

DORMINDO NO QUARTEL


Vista panorâmica do 6° RI, em Caçapava, onde os escoteiros pernoitaram

Não se pode dormir sossegado à beira de uma grande estrada, como a que atravessava o Vale do Paraíba em direção ao Rio de Janeiro. Os escoteiros souberam disso bem cedo. Para ser mais exato, as 6 da manhã. Por ali circulavam os caminhões que levavam leite para a Indústria de Laticínios de Campos do Jordão. Havia também outras grandes indústrias de laticínios, como a Vigor e a Armour.
Como registra Lydio em seu diário, pelo menos leite nunca faltou nesta etapa da viagem. Frequentemente, os produtores lhes davam litros e mais litros de leite, que eles bebiam com o entusiasmo de bezerrinhos.
Naquele dia, entretanto, eles haviam caminhado sem descanso até umas onze horas. Era preciso, para recuperar o tempo perdido. Cansados e com fome, eles perguntaram pela comida ao chefe Beto. Chefe Beto respondeu-lhes que havia sobra do só um pouco de comida, mas ela era só para ele: "Cada um por si e Deus por todos”, acrescentou.
Dito isso, ele pegou um belo sanduiche de presunto e queijo e um resto de leite e começou a saboreá-lo na frente dos outros. Para os outros, só havia leite. E foi o que eles almoçaram.
Lydio comenta que estava anotando isso em seu diário para que todos possam sabe que a viagem deles não foi um mar de rosas. Em alguns momentos, a vontade de jogar tudo para cima e desistir eram muito grandes. Entretanto, não se sabe como, “só o esforço hercúleo e a união dos quatro”, desiludidos pela falta de consideração do Chefe Beto, “é que garantiu o sucesso da missão”. Mas isso era somente a metade do dia.
Logo logo uma grande duma chuva os apanhou no descampado, obrigando-os a se socorrerem numa choupana abandonada. Ficaram ali um tempo, esperando a chuva passar. Quando passou, retomaram o caminho em direção a Caçapava.
As três e meia da tarde passaram pela vilinha de Eugenio de Melo, que Lydio notou ter somente “umas vinte casas e uma igreja católica”. Ali, pararam numa vendinha e se fartaram de comer biscoitos e pão com queijo e mortadela. Chegaram ao luxo de tomar um guaraná cada um.
Á tardinha chegaram em Caçapava, lá, tinham destino certo: o quartel do 6° Regimento de Infantaria. O 6° RI era uma das mais antigas e famosas unidades do exercito brasileiro. Estava em Caçapava desde 1919, mas a unidade já havia participado da guerra do Paraguai. Entre 1915-16, foi mobilizado na repressão á rebelião do contestado. No ano seguinte, em 1943, o 6° RI, juntamente com o 11° RI de São João Del Rei foi parte da FEB, tendo participado de praticamente toda a campanha italiana. Mas isso é futuro.
Neste dia, os chanceleres discutiam se ficariam neutros ou se alinhariam com os Estados Unidos. O governo Vargas, tendo garantido a siderúrgica de Volta redonda com dinheiro americano, já sabia que lado tomar. Lá na Europa, era mais um dia de ocupação alemã. No Japão, tropas australianas tentavam impedir o avanço japonês.
Em 17 de janeiro de 1942 os escoteiros foram alojados no 6° RI de Caçapava, onde só deu tempo de largar as tralhas no alojamento e subir rápido para pegar a boia. Depois, de banho tomado, foram levados por um suboficial a conhecer Caçapava.
Lá, eles visitaram a Radio Sociedade de Caçapava e o Caçapava Tênis Clube. Lá, tinha um sarau dançante, mas Milton, Manduca e Canário, cansados, voltaram ao quartel. Lydio e Beto ainda tiveram forças para ir ao cinema. Lá, segundo Lydio, viram o seriado “besouro Verde” e depois um filme policial.
Quando voltaram para o quartel ainda tiveram tempo de ouvir no radio o final de Brasil e Argentina pela Taça Sul-americana. A argentina ganhou, mas os meninos ficaram felizes ao saber que Caju, o grande goleiro atleticano e da seleção fora a grande sensação da partida.
A chuva ainda caia lá fora, e fazia frio. Os meninos, dessa vez bem protegidos, puxaram as cobertas e dormiram;



sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

FAZER AS PAZES NO VALE DO PARAIBA



Vista aérea de Jacareí e do Rio Paraíba do Sul em 1940, pouco antes dos escoteiros de Antonina passarem por ali. 
As sete horas da manhã, os escoteiros acordaram com os apitos da Maria Fumaça. Aquele dia, eles dormiram na cadeia de Jacareí, hospedados pelo delegado Clodoaldo de Abreu. Clodoaldo, que era irmão do comerciante antoninense Leopoldino de Abreu, havia recebido os meninos com a cordialidade de conterrâneos que se encontram no estrangeiro. Oferecera-lhes um rancho reforçado e deixara que estendessem as roupas molhadas no varal da cadeia. Não devia estar muito cheia a cadeia de Jacareí nesta quente sexta feira de janeiro de 1942.
Neste mesmo dia, os jornais do Rio de Janeiro noticiavam o início de uma ampla ofensiva Soviética na Ucrânia. Os japoneses ameaçavam Singapura, na Ásia. Mas a maior noticia da guerra, no entanto, era ali no Rio. Chanceleres de praticamente todos os países americanos estavam reunidos na capital federal, para discutir solidariedade internacional e repudio ao ataque japonês recém sofrido pelos Estados Unidos na base naval de Pearl Harbour, no Havaí.  
A III Conferencia de Chanceleres dos países americanos no Rio de janeiro em janeiro de 1942 significou um alinhamento da maior parte dos países à causa aliada. A partir daí a beligerância iria aumentar, bem com o ataque de submarinos alemães a navios brasileiros, forçando Getúlio Vargas a declarar guerra aos países do Eixo em agosto de 1942.
Enquanto isso, ali na delegacia de Jacareí, os meninos tomaram rapidamente o seu café. Logo, se puseram na estrada. Ao meio dia, pararam na localidade de Rio Comprido, próximo a São José dos Campos, onde lancharam café com leite, pão e ovos fritos. Lydio anotou em seu diário que essas despesas foram da ordem de 7.500 réis.
Logo depois, morrendo de calor, atravessaram um pequeno córrego e passaram por um pequeno aglomerado de casas chamado Vila Ema, onde ganharam alguns abacaxis, prontamente devorados. Continuaram subindo o morro até São José dos Campos.  Atravessarem rapidamente a cidadezinha e acamparam a uns 4 km adiante, num pequeno campinho.
Fazia trinta dias que os bravos escoteiros haviam saído de Antonina, em sua marcha rumo ao Rio de Janeiro. Era um momento de celebração no meio da viagem. A barraca foi armada e a fogueira acesa.
O “banquete” constou de peixe seco, farinha de milho, arroz e café com leite, acompanhado de pães quentes. Essa estranha mistura foi acompanhada de uma intensa discussão sobre os planos vindouros e para apagar os desentendimentos do passado recente.
Havia poucos dias, na altura de Guararema, o desentendimento entre os quatro meninos e o chefe Beto havia posto a missão em risco. Houve um estranhamento, eles se separaram, mas depois voltaram a se encontrar. Havia magoas a serem postas de lado. E, conta Lydio, foi o que fizeram. dali a pouco estavam contando piadas e rindo, despreocupados.
Aquele era um momento difícil na historia da humanidade. Ao longe, milhões morriam nos campos de combate e nas cidades conflagradas. O Brasil vivia um momento de apreensão em saber para qual lado penderia nesta guerra. Lá longe, na pequena Antonina, suas famílias estavam apreensivas com o que estava acontecendo com os cinco rapazes.
Afastado o desentendimento, eles estavam bem. Lydio conta em seu diário que tirou sua gaita de boca do bolso e todos começaram a cantar as marchinhas do carnaval daquele ano. Quase todos sabiam de cor todas as letras, pois eles as ouviam com frequência no rádio. Um pouco mais longe, sentado num toco de madeira, chefe Beto cachimbava.
Ao anoitecer, cada um procurou se aconchegar num canto da barraca e dormiram o sono dos cansados.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

ANTONINA CRIA...E O MUNDO COPIA (2)


A Ponta da Pita no final do Paleolítico Superior, onde a roda foi inventada por Barreano em 500 adC (antes de Carcanha)
 Para Neuton Pires

A genialidade antoninense dispensa apresentações. Aqui, entre a ilha do Teixeira e o pico Paraná, surgiu muita coisa essencial para a humanidade. Entretanto, a falta de jeito antoninense também dispensa apresentações. Assim como o barreado, que foi criado aqui e copiado em Morretes e em Paranaguá, muitas outras coisas criadas na baia de Guarapirocaba foram lamentavelmente copiadas alhures.
Os filhos da Deitada-a-beira-do-mar, por um motivo inexplicável, sempre foram passados pra trás por pessoas inescrupulosas, que ganharam dinheiro e glória com estes inventos geniais. E nós ficamos sem a fama. E sem a bufunfa.
Mas isso pouco importa. Tendo farinha e um peixe, uma cerveja gelada, deixe a fama e a grana lá pra eles. Não é assim? Como o pirão, dinheiro e glória também passam.

Uma das mais antigas invenções antoninenses foi, sem sombra de dúvida, a roda. Sim, a roda, qual o espanto? A roda foi inventada em Antonina.
A roda foi inventada por Barreano nos idos de 500 adC (Antes de Carcanha). Sua inspiração original foi ver um bebum rolando no chão após uma caranguejada no sambaqui do Godo. No entanto, a vida que seguia. Barreano demorou mais outros 500 anos pra colocar a ideia em prática...dava muito trabalho.

Durante os experimentos que levaram a criação final da roda, Barreano verificou que o processo original, usando pessoas, era uma tonteira só. A Turma do Litro, observando os experimentos ali perto do trapiche, disse diversas vezes para Barreano que aquela era uma invenção sem futuro. Afinal, o goró dá menos trabalho pra tontear, com uma relação custo-benefício mais rápida.

Mas Barreano não desistiu. Continuou pesquisando. Alguns dizem que contou com ajuda de pesquisadores da UNICAMP, mas isso é pura especulação. Trabalhando sozinho, sem apoio da FAPESP, Barreano levou mais 500 anos para se perceber que troncos eram mais apropriados. E mais 500 anos pra se aperceber que cortando os troncos dava mais resultado.

Quando a coisa estava quase pronta, Barreano ficou feliz: havia inventado a roda! Ele ainda não sabia muito bem pra que servia. só sabia que tinha dado um trabalho danado. Mais do que estava acostumado. Então, merecendo um descanso, ele foi comemorar a sua genial invenção com uma caranguejada no Sambaqui da Ponta da Pita.

No entanto, alguns homens de Neandertal, de passagem pelo trapiche municipal, que naquela época estava estragado, prestaram muita atenção nos experimentos de Barreano. Quando ele saiu pra comemorar, eles furtivamente pegaram um exemplar da roda e saíram de fininho.

Cerca de 500 anos depois, quando Barreano voltou da caranguejada, viu que sua invenção já havia sido roubada, aperfeiçoada e patenteada pelos homens de Neandertal. Tentou protestar, mas a Turma do Litro, ali do lado, deu risada de sua cara: “Não falamos que isso não ia dar certo, Barreano? Tava na cara! Inventar a roda? Vê se pode... Coisa mais inútil... Dá uma bicada aqui, na mardita”.

E assim se passaram mais 500 anos.


(mais uma crônica cronicamente antiga (2009?), repaginada)

domingo, 7 de janeiro de 2018

O BAGRE E O CELACANTO


tirei daqui

Para Salvador Picanço (1934-2008)




O celacanto é uma espécie de peixe que se supunha extinta há muito tempo, desde o cretáceo, há 65 milhões de anos atrás. Até ser pescado na costa da África do Sul, em 1938, acreditava-se que era somente um fóssil, atulhando prateleiras de museus de paleontologia. Hoje, sabe-se, ainda existem celacantos nos mares. Poucos, mas existem, como que pra contrariar a evolução das espécies, pra nos contrariar.

A mesma coisa se diz dos políticos honestos. O senso comum diz que eles não existem. Pra nos contrariar, os políticos honestos, como os celacantos, fazem suas aparições aqui e ali. Por estes dias, lamentou-se a perda do senador Jefferson Peres (PDT-AM), tido como um dos celacantos do congresso nacional. Sua defesa da ética e da honestidade, num oceano de pragmatismos partidários, dossiês e caixas-dois, foi como um delicado agitar de barbatanas sacudindo o imenso oceano. Entretanto, como dizia um bem-humorado grafitti dos muros de Sampa, no final dos anos 70, celacanto provoca maremoto. Quem sabe se ainda não teremos algum tsunami de ética agitando o lodo destes nossos mares?

Entre nós, bagres, sempre houve e haverá celacantos, embora os baiacus sempre pareçam mais numerosos. Conheci um destes celacantos bem de perto: Dodô Picanço. Com sua aparição na política antoninense, no início dos anos 70, ele foi um fenômeno, como bem prova sua votação pra vereador em 1972. Entre 1970 e 1976, sua presença dotou Antonina de inúmeras conquistas, como a restaurações das igrejas históricas, inúmeras agitações, como a Expoteira, e uma marcante atuação no legislativo municipal, numa época em que não havia salário pra motivar nossos vereadores.

Eu era muito piá nesta época, mas lembro dos comentários dele sobre as dificuldades de trazer recursos para a cidade naquela época de início de vacas magras. Lembro, também, da quantidade de “aspones” de deputados que apareciam em nossa casa com propostas indecorosas, e que ele os enxotou a todos. Diziam que era mão-de-vaca. Nunca vi ninguém tão generoso. Nunca fez muita questão de dinheiro. Era um político que mais gastou que ganhou dinheiro na política. Bicho raro. Celacanto.

Em casa, vivemos sempre modestamente, com seus recursos de funcionário público. Seu tempo e suas energias, ele os gastava com sua Antonina, com os escoteiros, com os seus bichos na chácara. Tirava, do dinheiro de sua aposentadoria, os recursos pra financiar esta sua ultima e quixotesca campanha para a Prefeitura. Até o fim, ele acreditava poder ajudar, poder fazer a diferença, poder fazer a cidade que ele amava sair da lama.

As pessoas de bem tem nojo de política, ódio dos políticos, e não as culpo. A maior parte deles merece nosso desdém. Só que, em nossa sociedade, quem os coloca lá somos nós. Eles são nossa cara, portanto. A política é a arte do possível, e nenhum político, sozinho, conseguirá nos levar ao paraíso. Esse caminho é coletivo.

Não sei se estamos melhores ou piores nos tempos que correm. Sei que precisamos de celacantos. Que eles existem, existem. Precisam é sair das tocas, agitar esse lodo, mostrar pras pessoas que seriedade e ética existem.  Eu sei que eles existem, eu já vi um celacanto bem de perto. Celacanto provoca maremoto.


(Este texto de 2008 é um texto que, aos meus olhos de hoje, é bastante ingênuo. Em tempos de Lava-jato, essas noções de decência e honestidade estão bem mais complicadas. Parace uma outra época e um outro mundo. O que fica é a lembrança de meu pai, que hoje faria 84 anos. Falei sobre isso outras vezes, aqui e aqui.)

Saudades, seu Dodô!