domingo, 22 de abril de 2018

OS FEIOS E FEDIDOS CHEGARAM


"hein? Capitalismo Mercantil? no comprendo..."
Já vai já meio milênio e mais de dezoito anos.

Certo dia, uma praia na Terra dos Papagaios amanheceu com uns barcos estranhos ao longo da costa. Lá pelo meio do dia, veio uma canoa para a praia. Eram uns caras feios, fedidos, macilentos. Queriam água, comida. Foi dada comida pra que fossem embora logo. Depois de uns dias, com uma cara melhor, mas ainda fedidos, vieram aos montes pra uma pequena ilha em frente. Estavam com medo.

Lá na ilha, um cara vestindo uma longa túnica preta, começou a falar algumas coisas sérias para os outros, que ouviam compungidos. Deveria ser algo religioso, ou coisa que o valha. Ergueu um pedaço de comida na mão, molhou numa taça com uma bebida vermelha e estranha, comeu e deu de comer para os outros. Primeiro, para os chefes, depois para o resto.

O chefe, este. Tinha muito medo, andava sempre escoltado. Tinha umas roupas vermelhas, usava uns colares estranhos. Tinha um olhar meio blasé, olhava tudo e todos de cima, menos o tal da túnica preta. Perto dele, outro homem com roupa simples ficava atento olhando tudo. De vez em quando, fazia algumas anotações num pedaço de papel.

Os outros, ficavam levando barris e barris de água pra dentro dos barcos, levavam comida, lavavam tudo. Ficavam olhando espantados para as mulheres na beira da praia. Parecia que nunca tinham visto mulher. Olhavam com vergonha, de olhos baixos, como se não quisessem ver. Estranhos.

Alguns foram lá nos barcos. O chefe lhes deu uns vidros coloridos e uns espelhos, de que gostaram muito. Viram alguns animais estranhos, um deles parecia um jacu pequeno, só que com penas vermelhas.

Depois de alguns dias, dois dos navios se foram, levando os papeis que o homem atento ficou dias e dias escrevendo. Os outros acabaram convencendo um dos nossos a ir com eles. Ele achou divertido, e se foi.

No dia de irem embora, deixaram três deles aqui na praia. Os homens ficaram chorando feito filhote de jaguar que perde a mãe. Parecia que ficavam por castigo.

Castigo ou não castigo, isso não era com a gente. Um deles foi morto neste mesmo dia, e fizemos uma grande festa com muita bebida. Pena que a carne do sujeito fosse tão dura e sem gosto. Os outros dois, ficaram um tempo mais por aqui e os matamos depois de uma grande vitória sobre os temiminós, nossos inimigos. Com um pouquinho de comida saudável e descanso, a carne deles ficou mais aceitável.

Dos outros, nem soubemos mais. Diz-que foram para as Índias, em busca de fortuna.

Pra que, se o Paraíso é aqui, e agora?

(este é um texto antigo, repaginado...acho que ainda rola...)

sábado, 14 de abril de 2018

SONATA DE OUTONO


https://sarahabed.com/about/
tirei daqui
O dia está ensolarado. Um pouco de vento, e uns cirros no céu anunciam uma chuva para breve. Chuva que, por certo, não virá, ressecando o solo, as plantas e nossas vidas.  É nosso outono.

Ontem à noite fui surpreendido com a noticia do ataque americano (mais ingleses e franceses) em instalações na Síria, que supostamente abrigariam armas químicas. Fui dormir sem saber se acordaria num mundo conflagrado, já que havia promessa de resposta russa. O Armagedon pululuva nas redes sociais.

Hoje, já se sabe que, fora os danos de sempre, nada aconteceu de verdade. Algumas instalações sírias foram destruídas. Os russos protestam veementemente, mas não encostaram o dedo em seus próprios mísseis. Uma reclamação formal e uma proposta de reunião do Conselho de Segurança. O próprio Secretário-Geral condena o ataque. Aqui ao meu lado ouço o barulho das crianças da casa ao lado brincando na piscina.

Por curiosidade, deixo a televisão ligada na Al-Jazeera. De cara, vejo um debate entre um analista da Bloomberg e Glenn Greenwald, do Intercept. Debate duro. A mesma toda dos outros debates que vejo depois: por um lado uns acusam Trump de piorar o que já estava ruim, e ainda usando o argumento das armas químicas. O próprio Secretário-Geral da ONU Guterres disse que haviam técnicos no local prontos para investigar se ali haviam armas químicas. Do outro, a alegação de que era preciso combater armas químicas e os civis sírios.

Milhões de sírios estão dispersos hoje pelo mundo. Vivendo em acampamentos, tomando barcos frágeis sob controle de contrabandistas para fugir da guerra civil que já dura sete anos. E eles são quem tem que arcar com os custos em vidas e infraestrutura por cada ação militar, “cirúrgica” ou não, cometida em seu território, no intrincado xadrez que é a guerra civil lá deles.

Continuo vendo a al-Jazeera. Logo depois, um duro debate entre um representante palestino e um ex-ministro da justiça de Israel sobre os últimos acontecimentos em Gaza. Pelo que entendi, tropas israelenses e mesmo snipers foram usados para dispersar uma manifestação palestina na faixa de Gaza. Outro debate duro.

Fui cuidar da casa. Afinal, o mundo não vai acabar, e tenho coisas a fazer. Fico me lembrando do nosso quintal. Há uma semana Lula está preso em Curitiba. Um tribunal desses aí tirou o agora ex-governador Geraldo Alckmin da lista da Lava Jato. O entendimento é que o caixa dois não é crime, e tem que ser julgado na justiça criminal. Parece que a sangria vai sendo estancada. Com o Supremo, com tudo.

O mundo não vai acabar. Ao menos por enquanto. Tem muito louco à solta por aí, com poder para fazer isso acontecer. Aqui, ninguém sabe o que vai acontecer. Estamos longe de virar uma síria. Mas tem muito louco que gostaria de fazer isso acontecer em terras tupiniquins. Não seria difícil. Já temos uma guerra civil latente contra os pobres. As milícias já estão ocupando território, como nas guerras civis mais banais. Mas ninguém do lado de cá do “apartheid” em que vivemos pensa nisso a sério, como Marielle Franco pensou.

Um mês do assassinato de Marielle, e tudo vai se resumindo a notícias cada vez mais esparsas e cartazes desbotados nos corredores da universidade. Milhões de pessoas em todo mundo apoiam o bombardeio de Trump sem questionar. Na televisão, aberta, fechada ou por streaming, o que se vê são “famosos”. Nas redes sociais, podemos saber mais sobre eles: quem são? Como se reproduzem? A banalidade vai tornando tudo irreal, tudo borrado e apagado como uma folha de papel impressa que ficou na chuva.

O Armagedon de ontem à noite se dilui como as nuvens que vi no céu há pouco.  Uma amiga querida me corrige que a Al-Jazeera é igual ao nosso PIG, e que suas matérias sobre a guerra civil na síria são igualmente ridículas. Concordo. Acho que estou muito preso ao meu umbigo, sem procurar ver o que acontece no mundo, como fazia antes. Vamos lá, então. O outono está só começando.

domingo, 8 de abril de 2018

AS RIMAS DE ADEODATO


o bravo Adeodato, líder camponês do Contestado, preso em 1916
Em 14 de agosto de 1916 o jornal O Dia – órgão do Partido Republicano Catarinense informou sobre a chegada de Adeodato, o último grande líder da Revolta do Contestado, preso, à capital do estado.
Adeodato, ou Leodato, era um mulato de 29 anos. Tinha sido, nos últimos tempos da revolta do Contestado, o chefe do reduto de Taquaruçu. Neste reduto, onde viviam mais de 10 mil pessoas, o jovem Adeodato era o chefe incontestável.
De todas as lideranças do contestado, Adeodato era o primeiro grande chefe que não era beato. O movimento havia sido iniciado com a veneração a São Joao De Maria, um beato que percorrera a região no final do século XIX, tendo desaparecido sem que se soubesse seu destino.
Foi sucedido por São José de Maria, o beato Guerreiro, que havia pregado nos sertões de Santa Catarina. Havia separado seu povo escolhido, os pelados, que tinham sua cabeça raspada em sinal de devoção. Os pelados se contrapunham aos peludos, os outros, que representavam os grandes proprietários de terras, o governo, as grandes companhias ferroviárias.
São João de Maria morreu em combate em 1912, na batalha do Irani, quando os seu pelados derrotaram uma companhia da Policia Militar do Paraná, comandada pelo coronel João Gualberto. Joao Gualberto, tão valente quanto inconsequente, adentrou o acampamento matando mulheres e crianças, tendo sido detido pelos pelados, que destroçaram sua companhia em combate singular, matando João Gualberto a golpes de facão.
Adeodato comandou Taquaruçu, o último dos grandes redutos dos pelados entre 1915 a 1916, quando foi preso. Chefe camponês, Adeodato comandou o reduto com mãos de ferro, liquidando qualquer um que se opusesse a ele. O terror de Adeodato foi decisivo na unidade dos pelados nos últimos combates em Taquaruçu, em 1916. Por fim, o “Antônio Silvino do Contestado” foi preso e enviado para Florianópolis.
Adeodato foi julgado e condenado a 30 anos de prisão. No momento de sua sentença, uma testemunha ocular anotou as rimas que o réu declamou para o tribunal reunido e o público assistente. Em seus versos, repletos de ironias, Adeodato fez seu canto e sua defesa.

Adeodato zombou dos vencedores e expôs cruamente as agruras dos camponeses do Contestado, uma guerra que o Brasil (e o sul do Brasil, hoje tão conservador e reacionário) faz questão de esquecer:

Trinta ano vô cantá
Relatando as travessura
Que aqui neste processo
Acoumaro de diabrura
Me acusaro de mir morte
Que levei a sepultura
Mas levei aqui do mundo
Dei descanso às criatura

Nada disso acho crime
Ao contrário é bravura
Afastei aqui do mundo
Os que tinha vida dura
Bem por isso tô contente
De luta, nesta artura
Pra tira muitos cabocro
Das pobreza e das agrura

Sô iguar a picapau
Que qualquer madeira fura
Sô nas carta o Rei de Espada
Desaforo não atura
Sô quinem toro de briga
Por nadinha armo turra
Nego bão de minha raça
Não tem chão que se apura

Pra tirar os mar do mundo
Tinha feito uma jura
Ajudei nosso governo
A quem amo de ternura
Acabei com deiz mil pobre
Que livrei da escravatura
Liquidei todos faminto
 E os doente sem mais cura

Quem quisesse terra e escola
Eu lis dava uma surra
Ajudando os do governo
No recheio de suas burra
A pobreza pro inferno
Onde lá o diabo urra
Essa terra é de nos rico
Nossas veias são mais pura!

A pobreza que se enforque
E se enterre numa lura
Sendo pobre é oireiudo
Só os bobo é que zurra
Os que nasce bem esperto
Bom emprego eles percura
Quem é pobre nesse mundo
Só merece sepurtura

Bem agora me despeço
Só dos rico, com doçura
Tenho sombra e agua fresca
Na cadeia tem fartura
C´um abraço ao meu governo
Deixo a minha assinatura
Por Leodato M. Ramos
Arrespondo nessa artura

Adeodato foi um dos grandes líderes camponeses do Brasil, cuja memoria precisa ser lembrada. Este dados foram compilados do livro “Lideranças do contestado: a formação e a actuação das chefias caboclas, 1912-1916”, do professor Paulo Pinheiro machado da UFSC; .
A história completa pode ser encontrada em: Machado, Paulo Pinheiro. Lideranças do contestado: a formação e a actuação das chefias caboclas, 1912-1916. Vol. 17. Editora da UNICAMP, 2004.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

HÁ MUITA PRESSA NESSA NOITE


copiei daqui
Há muita pressa nessa noite. Há uma pressa em julgar e condenar. Que pressa é essa? Ao que parece, essa noite o confronto foi adiado. Amanhã, o desfecho.
Há também uma certa pressa neste desfecho. Que desfecho? O que acontecerá nesta bela manhã de 7 de abril? Na noite de amanhã muitos dormirão satisfeitos, achando que sua sede de vingança foi saciada. Muitos tripudiarão e escarnecerão de quem lutou gritou e esperneou, mas perdeu.
Quem perdeu? Quem ganhou? Essa não é uma resposta simples nesta fresca manhã de abril. Quem perde com uma justiça vingadora? Uma justiça vingadora que quer punir de qualquer jeito, é a melhor negação que existe de justiça. Justiça?
Há quem sonhe com justiça. Há quem sonhe com um mundo de bons e maus. Mas o que não vemos é que nosso mundo é um mundo de trabalho e capital, todos igualmente bons e maus, cada um à sua maneira. O que existe é um mundo de interesses. Uns mais outros menos mesquinhos. Todos igualmente bons e igualmente maus, dependendo de como se olha.
O mundo não é simples. Nem comporta mocinhos e bandidos. É um mundo de interesses. Capital quer o trabalho de quem não tem capital. O trabalho quer trabalhar e arrancar uma migalha do capital. O capital não gosta do trabalho: é feio, sujo, imundo, fala mal. O trabalho também não gosta do capital, mas tolera seu salário mensal.
Há muita pressa nessa noite. O capital tem pressa (Tempo é dinheiro!). Precisamos tirar tudo do trabalho: sua voz, seu líder, sua inspiração, sua moral. Parece que não há garantias para quem defendo o trabalho. O próprio trabalho parece hesitante, em sua luta contra o capital.
Nesta noite, alguns dormem. Outros, fazem vigília. Outros pensam que fazem o certo, o bom, o moral. São anjos, são puros, balança na mão e espada na outra. A procuração de Deus no elástico da cueca. Anjos de cueca no reino do capital.  
Há muita pressa. Há pouca justiça. Há o trabalho. E há o capital.  

domingo, 1 de abril de 2018

UM PRIMEIRO DE ABRIL CONTRA A MENTIRA



Hoje é primeiro de abril e domingo de Páscoa. Qualquer coisa que seja dita hoje pode cair na brincadeira de 1° de abril. Aliás, estamos numa época em que parece que todo dia é primeiro de abril. As disputas ferozes de narrativas que temos visto no mundo todo nestes últimos anos pelo menos estão colocando-nos todos numa situação muito complicada.
Eu sinceramente acho que tudo isso começa com a crise do subprime em 2008. Desde lá, como na crise de 1929, as economias centrais e as periféricas começaram a patinar. As pessoas, a se desentender. O preço de diversas mercadorias (eu ia dizer commodity, mas fiquei com vergonha...) começaram a despencar. Com isso, varias economias baseadas na exportação de produtos primários acaba sofrendo. Mas enfim, não sou economista pra dizer isso com todas as letras.
Por outro lado, temos uma narrativa política a ser debatida. Foi Golpe ou foi impeachment? Tecnicamente, foi um impeachment, tudo dentro da lei. Certo? Sim, foi dentro da Lei. Mas todo impeachment não é sobre crimes, é sobre política. O impeachment de Dilma Rousseff foi político. No entanto, a razão subjacente era outra: tinha-se que, nas palavras imortalizadas por Romero Jucá, “estancar a sangria”. Sangria do que? Da lava jato. Livrar os políticos envolvidos nas investigações com um “grande acordo”, ainda nas imorredouras palavras de Jucá, “com Supremo, com tudo”. Uma vez que era político, era preciso interpretar a lei até o seu limite, porem sem torcer demais. Como lavar roupa de seda.
Por tudo isso, o impeachment de Dilma foi uma farsa. Para a jornalista do New York Times, Amanda Staub, que não é comunista nem trabalha para um jornal comunista, dizer que o medo da lava jato dá “às elites políticas [brasileiras] um meio e um incentivo para expor seus rivais, sabendo que isso provavelmente os arruinará”. Por isso a felicidade com que os deputados e depois os senadores participaram daquela votação grotesca de maio e depois de agosto. Lembram?
Mas hoje é primeiro de abril. Há 54 anos atrás teve inicio o golpe que levou os militares ao poder no Brasil. Com a polarização que temos neste momento, vejo muitos posts louvando a Ditadura e tentando mesmo mudar a narrativa. Inúmeras fake news são postadas a todo momento para reforçar isso. O levantamento das postagens após a morte da vereadora Marielle Franco mostrou que se trata de um grupo minoritário, menos de 7%. Mas isso não quer dizer que não seja importante. E preocupante.
A rapidez com que as pessoas se apegam as noticias falsas é uma coisa preocupante. Numa entrevista recente ao jornal El Pais, o ciberengenherio Christopher Wylie expos alguns fatos ligados ao recente escândalo da Cambridge Analytica (veja mais sobre o escândalo aqui), que trabalhou nas eleições de Trump e do Brexit. Ele afirma cabalmente que houve trapaça, que houve distribuição de notícias falsas para enganar os eleitores.
A Cambridge Analytica atuava, por exemplo, identificando nas redes sociais pessoas suscetíveis a cair em teorias conspiratórias. A partir daí, segundo Christopher Wylie,você fabrica blogs ou sites que parecem notícias e os mostra o tempo todo às pessoas mais receptivas a esse pensamento conspiratório”. Estas pessoas começam a replicar este conteúdo e não acreditam nas noticias veiculadas pelos jornais sérios. Segundo ele, aconteceu nos Estados Unidos com uma notícia que Obama estaria enviando tropas para o Texas porque ele não deixaria o governo. A noticia era falsa, mas criou uma comoção tremenda. Assim vão manipulando as pessoas.
A  manipulação no Brasil já está acontecendo. Há anos, como o caso do Lulinha ser o dono da Friboi. Muita gente “de bem” acreditou.  Foi bem claro no episódio da morte de Marielle Franco. Na semana seguinte, com os tiros à caravana de Lula, as noticias falsas pulularam. Paginas do facebook foram tiradas do ar por propagar noticias falsas e calunias. A tal desembargadora de ideias racistas e homofóbicas vai sofrer processo. Mas os robozinhos continuam. Movimentos como o MBL continuam a propagar mentiras.
As pessoas não percebem isso? Não, e por um motivo muito simples: os robozinhos dão o que eles querem receber. Alimentam com notícias que falsas, mas que comprovam uma ideia que a pessoa já tem. E o ciclo da ignorância se fecha. O círculo da ignorância só beneficia o fascismo que está no ar, denso como uma fumaça tóxica.
Neste primeiro de abril precisamos paradoxalmente estar alertas para a mentira.